"Capitães de Areia" começa com uma série de relatos jornalísticos sobre supostos crimes cometidos pela gangue dos garotos de rua. Quem leu a obra até o final sabe que a intertextualidade com o gênero notícia está presente em momentos cruciais do enredo. Tendo em vista esta questão e buscando aproximar a realidade dos Capitães com a de nossos alunos, por que não propor uma atividade com jornais recentes?
Eu selecionei 4 matérias sobre garotos e garotas de rua de veículos distintos. Assim, é possível trabalhar a distinta abordagem de cada um sobre o tema. Os termos grifados são expressões que marcam a posição de cada meio de comunicação sobre os fatos - deste modo, uma atividade possível é indagar aos alunos por que o jornal X escolhe a expressão "vândalos" e o jornal Y escolhe o termo "meninos", por exemplo. Além de aprenderem mais sobre o livro, os estudantes entenderão muito melhor como funcionam as tramoias linguísticas dos meios de comunicação.
Gangue de crianças volta a atacar em São Paulo
Formado por meninas e, desta vez, também por meninos, o grupo continua a promover arrastões na região da Vila Mariana
Uma gangue formada por meninas voltou a atacar na região da Vila
Mariana, Zona Sul de São Paulo. Depois de quase um mês sem perturbar os
moradores e comerciantes do bairro, as garotas voltaram a protagonizar
arrastões em lojas e na rua, atacando pedestres e motoristas. Nos
últimos 11 dias, cinco ocorrências envolvendo meninas e, desta vez, também
meninos, com idades entre 9 e 15 anos foram registradas pela polícia.
Às 11 horas da última sexta-feira,
quatro garotos e uma menina tentaram assaltar os motoristas num semáforo da
Avenida Noé de Azevedo, sem sucesso. O grupo foi preso por policiais militares
que faziam a patrulha na região e encaminhado ao Conselho Tutelar da Vila
Mariana.
A garota, R.P.A., de 14 anos, envolveu-se
em pelo menos outras duas ocorrências, em agosto e setembro. Em 22 de
setembro, por volta das 17h30, os policiais flagraram R.P.A. e dois
meninos atacando moradores na esquina da Avenida Noé de Azevedo com a Rua Dona
Júlia, na Vila Mariana. Na ocasião, a menina foi conduzida ao Conselho
Tutelar. Depois, para um abrigo. Mais tarde, voltou às ruas.
C.J.G.S., de 11 anos, é outra
integrante da "gangue de meninas da Vila Mariana", como o grupo ficou
conhecido depois de promover inúmeros arrastões na região. Em 29 de setembro,
por volta das 11h40, C.J.G.S. foi presa perto do Viaduto Santa Generosa depois
de, na companhia de outros adolescentes, tentar furtar pedestres. Como nada foi
roubado, a menina foi levada para o Conselho Tutelar. Os comparsas adolescentes
conseguiram fugir. Dois dias depois, os mesmos policiais flagraram a mesma
menina tentando roubar o relógio de uma mulher no mesmo viaduto. Mais uma vez,
C.J.G.S. foi parar no Conselho Tutelar.
Solução ─ Às 10 horas do último domingo, 2 de outubro, Rosélia
Aparecida Alves da Silva, funcionária do quiosque Vitta Pane no Terminal Vila
Mariana, foi surpreendida por seis meninos e uma menina. "Eles roubaram
bolos, lanches e sucos e me ameaçaram", conta. "Quando foram
embora, jogaram o que estava no balcão em mim". Rosélia não registrou a
ocorrência. Segundo o capitão Flávio Baptista, comandante do 12º Batalhão da
Polícia Militar, o policiamento foi reforçado na Rua Domingos de Morais e nas
imediações das estações do metrô.
"Graças ao reforço foi possível
fazer mais flagrantes e evitar inúmeros outros", afirma Baptista. "Porém,
por causa de limitações legais, não cabe a nós a resolução desse problema".
A Secretaria Municipal de Assistência Social informou que apenas um caso
envolvendo a gangue da Vila Mariana foi registrado pela pasta. Acelino Marques,
conselheiro tutelar da Vila Mariana, disse que, neste mês, recebeu duas
crianças envolvidas em furtos. "Como os menores moram em Cidade
Tiradentes, na Zona Leste, os casos foram encaminhados para lá", diz
Marques. "Nós mesmos os levamos de van".
(Veja – 05/10/11)
‘Gangue das meninas’ leva pânico à elite raivosa
(...) Vejo uma São Paulo em polvorosa por conta das ações de
meninas que se organizam para cometer pequenos furtos nas
redondezas da Vila Mariana – a “denúncia” ecoou por meio de reportagem
dominical da tevê num fim de semana, e foi logo tratada como mais uma questão
de segurança pública a assolar a vida da pobre e sofrida classe média que só se
preocupa em nascer e morrer sem o sobressalto de ver levado o aparelho de som
do carro que equipou a duras penas.
As reportagens que se seguiram por diversos veículos sobre “a
gangue das meninas”, que promoveria arrastões pela capital, funcionaram
como nitroglicerina pura para a ala raivosa da classe média que já não sabia o
que fazer com os seus pedidos de redução da maioridade penal e higienização do
centro expandido das grandes cidades. De repente, deram fôlego para a defesa da
velha necessidade de se mudar a lei. Numa semana em que a economia mundial se
derretia por conta da irresponsabilidade de banqueiros e especuladores, em que
a muito custo um ditador sírio fazia a segunda milésima vítima fatal e a fome
na Somália deixava um saldo de 20 mil crianças mortas, só se falava em outra
coisa nas rodas de conversas das famílias paulistanas.
O perigo, de repente, era a gangue das meninas. E a revolta
era justamente causada pelo flagrante da mãe de uma delas, que lamentava que as
meninas, recém-detidas, haviam sido ingênuas o suficiente para voltar ao local
do crime onde já estavam “marcadas”. A instrução foi a brecha para que meio
mundo tirasse o pó do discurso sobre a necessidade de se degolar a mãe, as
filhas, o pai ausente, os assistentes sociais e a polícia “que não prende, não
me protege, não faz jus aos impostos pagos” e toda a baboseira que se diz em
tempos de pavor coletivo.
No auge da revolta, sobrou até para duas jornalistas do
portal iG que, durante 40 dias – antes, portanto, da “denúncia” –, pesquisaram
e conviveram com grupos de meninas para escrever sobre liderança feminina nas
ruas. O pecado delas foi mostrar justamente quem eram as vítimas da história.
Foi o suficiente para serem acusadas, por leitores desavisados, de apelar para
futilidade no intuito de proteger as “marginais”. Estes não foram capazes nem
mesmo de esboçar um certo pesar ao ler o depoimento de uma das meninas sobre o
alívio que sentia quando eventualmente conseguia simplesmente tomar banho – e
afastar o nojinho que as pessoas sentiam ao vê-la, suja e estropiada.
Quando li e ouvi a execração pública da mãe que relevava o crime
das filhas, logo lembrei do discurso recorrente dos pais que, ao verem os
filhos flagrados em casos de agressões gratuitas (“Puxa, batemos na empregada
achando que era prostituta”), acidentes provocados por racha de playboys,
crimes passionais e outros delitos, saem berrando em bom português: “Meu filho
não é marginal”.
A mesma rua que abre as porta como abrigo às pequenas
vítimas da violência doméstica diária é também o palco de crimes diários
que não distinguem raça e cor. Nem o furto nem o estupro nem o homicídio
cometido por quem não se importa de andar a mil na contramão e atropelar
ciclistas ou pedestres com as bênçãos do papai que bancou a gasolina. Ou
oferecer suborno a policiais para simplesmente não cumprir a lei.
No caso das ruas, a inclinação ao crime às portas da
infância é, quase sempre, patrocinada por adultos que se valem da lei para
escapar de uma eventual condenação de um mundo que já os condenou aos pontapés
desde o nascimento. Mas a orientação para que os filhos se deem bem a qualquer
custo é privilégio de classes: ocorre antes dos pequenos furtos pelas ruas e
também debaixo das abas dos “humanos direitos”. A diferença é que, no
Brasil, ninguém coloca a mão na carteira quando vê um desses pelas ruas.
(Carta Capital – 15/08/2011)
Meninas de Rua
Já era bem
chocante saber que meninas -- às vezes com 10 ou 11 anos de idade -- andavam
promovendo arrastões nas ruas da cidade. A gangue, que contava com 15 crianças,
andou fazendo misérias na Vila Mariana, zona sul de São Paulo.
De furtos em semáforos
a invasões de lojas, faz tempo que essas meninas não brincam de boneca --se
é que puderam fazer isso alguma vez na vida.
Mas o
noticiário não para por aí. Chegou, finalmente, até as mães das infelizes.
Quatro mulheres foram presas nesta quinta-feira acusadas de "abandono de
incapaz".
O diálogo entre
uma delas e a filha delinquente foi registrado por repórteres. Vale como
retrato de uma miséria que não é só material, mas também humana e ética,
no sentido mais amplo. "Você foi voltar no mesmo local do crime?" -- perguntou
a mãe à criança apanhada em flagrante. "Você é uma besta mesmo”.
Não dá para
saber se era uma repreensão do ponto de vista técnico-profissional -- com a mãe
achando normal se a filha fosse mais esperta na hora de cometer seus delitos --
ou se havia nessa frase o desespero de quem já abandonou qualquer expectativa
de que a menina se emendasse.
Para a polícia,
as mães disseram que já não sabem o que fazer com as filhas. Dizem que elas
fogem da escola para assaltar. Alguém mais desconfiado pode perguntar se as
meninas não estão sendo estimuladas ao crime por adultos que se beneficiam da
impunidade.
Na cidade mais
rica do país, onde os apelos do consumo não faltam, falta responsabilidade de
todos os lados -- dos pais, do governo, da sociedade. É a rua que toma conta
delas, e elas tomam conta da rua.
(Agora São Paulo – 15/08/2011)
Novas meninas de rua assumem vaidade e liderança
Primeira reportagem da série especial sobre as novas
meninas de rua mostra mudanças no perfil das garotas
Enquanto um grupo de meninas de rua de
São Paulo virava notícia nacional por furtar e assaltar lojas do bairro da zona
sul paulistana chamado Vila Mariana, no centro da cidade Bruna pintava
as unhas no estilo francesinha, Bia alisava os cabelos com chapinha com
ajuda de um creme especial, Silvia passava batom rosa e pensava se
finalmente beijaria na boca.
Os produtos de beleza eram usados a céu
aberto e ajudavam a transformar a aparência de três das 6.800 garotas que
dormem, vivem e sobrevivem ao relento, conforme contabilizou o censo de meninos
e meninas de rua feito em 75 cidades brasileiras e divulgado há três meses pelo
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
Durante os últimos 40 dias, o iG
acompanhou a rotina de Bruna, Bia, Silvia e outras 11 “meninas do asfalto”
da região central de São Paulo para tentar desvendar quem são estas garotas
espalhadas pela cidade. Esta é a primeira reportagem da série, que continua nos
próximos dias.
O salto alto e as roupas que imitam
peças de grifes famosas chamam a atenção de especialistas e educadores por
enfeitar quem não tem casa. Dentro da complexidade de facetas destas meninas,
em meio ao furto, uso compulsivo de drogas, ingenuidade e realidade perversa,
eles notaram também uma outra mudança: a ascensão feminina à liderança dos
grupos de crianças de rua.
Para Elder Cerqueira, coordenador de
Psicologia Social da Universidade Federal do Sergipe e pesquisador da situação
de vulnerabilidade das crianças brasileiras, houve mudanças nos últimos dois
anos, e a menina de rua hoje pode desempenhar três papéis diferentes. Um deles,
já bem antigo, é quando ela se masculiniza – com cabelos curtinhos e bermudões
– para se proteger. “Não é reflexo de uma possível homossexualidade, mas uma
ferramenta de inserção em um grupo já quase totalmente masculino”, pontua
Cerqueira.
Outra possibilidade é usar a própria
sexualidade como mecanismo de aceitação. “Ser a namoradinha de um dos garotos
ou uma espécie de objeto sexual que passa de mão em mão entre os meninos da
turma”, explica. A terceira função, mais recente e ainda minoritária, é a de
líder do grupo. Caso das meninas da Vila Mariana e daquelas que a reportagem
acompanhou no centro.
Em um grupo de meninos e meninas de rua
diferente, Manuela, 26 – que após quase duas décadas na rua perdeu a maior
parte dos dentes e acumula escaras na pele – ainda guarda características
femininas que fizeram dela uma líder e a ajudam permanecer no “poder”. São
características também de Marina e Bia. Elas, ao mesmo tempo em que
expressam cuidado materno com os mais novos, também são responsáveis por
fornecer cola, tíner e maconha às crianças. Os entorpecentes misturados à
proteção fazem os filhos fictícios não quererem sair de seus domínios.
Das 14 meninas mulheres acompanhadas
pelo iG, 3 foram apreendidas na Fundação Casa (Marina, Bruna e Silvia) por furtarem
refrigerantes; uma delas nunca mais apareceu no grupo; uma quarta abandonou
o emprego e as outras podem estar por aí, brincando e retocando o batom.
(Fernanda Aranda e Heloisa Ferreira,
iG São Paulo, 13/08/2011)
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