Quando
trabalhamos com narrativa e descrição, um problema comum é o clichê, a falta de
recursos dos alunos para trabalhar sua própria criatividade. A atividade que
proponho abaixo visa ajudar na resolução deste problema, fazendo com que os
estudantes percebam que, muitas vezes, vale mais “como se conta” do que “o que
se conta”.
1
– Pedir que os alunos escrevam uma descrição sobre como matar baratas. O
assunto parecerá bobo e provavelmente as descrições obtidas penderão para um
manual de uso de Raid. Depois de dar uma olhada nas produções dos alunos, ler
em conjunto o começo do conto:
A Quinta História
Esta história poderia chamar-se "As
Estátuas". Outro nome possível é: "O Assassinato". E também
"Como Matar Baratas". Farei então pelo menos três histórias,
verdadeiras porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e
uma, se mil e uma noites me dessem.
A primeira, "Como Matar
Baratas", começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a
queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais
açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso
esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz. Morreram.
Mostrar
para os alunos a diferença entre um manual de Raid (predominância de sequência
injuntiva) e um conto (uso de sequência narrativa, descritiva e dialogal podem
ser analisadas no excerto acima).
Pedir
para que os alunos reescrevam seus textos, agora em forma de conto. Continuar a
leitura do conto de Lispector:
A outra história é a primeira mesmo e
chama-se "O Assassinato". Começa assim: queixei-me de baratas. Uma
senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é
que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram:
pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só
na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso
nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais
intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram
invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranqüila.
Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu e
preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da
longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só
queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos
cantos enquanto a gente dorme, cansada, sonha. E eis que a receita estava
pronta, tão branca. Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o
pó que este mais parecia fazer parte da natureza. De minha cama, no silêncio do
apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de serviço onde o
escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas depois em
sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha. No chão da
área estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome,
amanhecia. No morro um galo cantou.
Fazer
uma análise do excerto do conto, mostrando suas características literárias
(suspense, uso de metáforas, ironia, etc). Pedir para os alunos reescreverem
mais uma vez o seu conto, adapatando-o de forma que ele possa constituir uma
sequência para o conto de Clarice. Continuar a leitura:
A terceira história que ora se inicia é
a das "Estátuas". Começa dizendo que eu me queixara
de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de
madrugada, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu
está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora, um
arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas
de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro
para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se
completaria jamais. Na boca de umas um pouco de comida branca. Sou a primeira
testemunha do alvorecer de Pompéia. Sei como foi esta última noite. Sei da
orgia do escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num
processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão
sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si
mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e como tal, tal
olhar de censura magoada. Outras - subitamente assaltadas pelo próprio âmago,
sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! -
essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te...
Elas que, usando o nome de amor em vão,
na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de
branco terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não ter
sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: "é que olhei demais
para dentro de mim" é que olhei demais para dentro de..." - de minha
fria altura de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra
antena de barata morta freme seca à brisa. Da história anterior canta o galo.
Fazer
mais uma análise, comparando este excerto do conto com os anteriores – o que
mudou? Os alunos também conseguem fazer uma segunda versão para a história que
criaram, incorporando alguns dos recursos utilizados por Clarice?
A quarta narrativa inaugura nova era no
lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo
os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde esta
mesma noite renovar-se-á uma nova população lenta e viva em fila indiana. Eu
iria então renovar todas as noites o açúcar letal? como quem já não dorme sem a
avidez de um rito. E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o
pavilhão? no vício de ir ao encontro das estátuas que minha noite suada erguia.
Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci
também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde
interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se
dizem adeus, e certa de que qualquer escolha seria do sacrifício: eu ou minha
alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude:
"Esta casa foi dedetizada".
A quinta história chama-se
"Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia". Começa assim:
queixei-me de baratas.
(Clarice Lispector)
Analisar
o final do conto e propor uma discussão sobre o poder das boas histórias – é
preciso um bom assunto para desenvolver uma boa narrativa? Qual a importância
da descrição em um conto? Fazer a leitura de algumas produções dos alunos